terça-feira, 31 de março de 2015

Um pouco sobre como os tribunais europeus lidam com o compartilhamento de conteúdo na internet

O Tribunal de Justiça da União Europeia (em inglês Court of Justice of the European Union ou CJEU) é, em breve resumo, um tribunal de pacificação de jurisprudência o qual, quando questionado pelo tribunais dos países membros da UE, deve se manifestar no sentido de esclarecer qual o meio correto de se aplicar a legislação europeia para determinado caso.

Esse tribunal vêm tendo grande relevância no âmbito da propriedade intelectual nos últimos tempos, especialmente no tocante ao esclarecimento de algumas questões de compartilhamento de conteúdo na internet. Aqui abordarei, de maneira célere, três desses casos paradigmáticos. A legislação correntemente citada (Diretiva 2001/29/CE) é a que harmoniza a proteção do Direito de Autor nos países-membros da UE, de forma que as legislações nacionais europeias devem respeitar as disposições desse documento legal e sua forma de aplicação, conforme tutelado (quando necessário) pelo CJEU.

No primeiro processo (C‑466/12), conhecido como caso Svensson, o tribunal foi instado a se manifestar acerca da legalidade da inserção em um site da web de hyperlinks que levassem a um conteúdo protegido por Direito de Autor. Em resposta o CJEU esclareceu no sentido de que "não constitui um ato de comunicação ao público (...) o fornecimento, num sítio Internet, de hiperligações para obras livremente disponíveis noutro sítio Internet", muito em decorrência do conteúdo já estar disponível livremente na internet, portanto não infringindo o direito de comunicação e disposição ao público.

No caso Bestwater (C-348/131) quando questionado se a exibição de um vídeo já publicado na internet em outro website constituiria infração, o tribunal decidiu que tal seria legal, uma vez que não constitui ato de comunicação ao público, uma vez que "a obra em causa não é transmitida a um público novo nem comunicada através de um modo técnico específico, diferente do da comunicação de origem".

Por fim, no caso mais recente, datado de 22/03/2015, entre C More Entertainment AB e Linus Sandberg (C‑279/13), o qual versava sobre a disponibilização ilegal de jogos ao vivo de hóquei, o tribunal decidiu que ainda que possam ser protegidos pelo titular do direito de autor, as transmissões ao vivo não constituem atos de colocação à disposição do público, pois não seriam acessíveis por qualquer pessoa no momento por ela escolhido.

Nos três casos, percebe-se constante citação ao Direito de Comunicação da obra ao Público e ao Direito de Comunicação e Disposição da Obra ao Público. O primeiro é um dos direitos patrimoniais basilares dos titulares da obra, previsto no artigo 11-bis da Convenção de Berna e versa sobre o direito que o titular da obra tem em mostrá-la a outrem. Já o segundo foi introduzido pelo Tratado da OMPI2 sobre o Direito de Autor, datado de 1996, com o objetivo de abarcar o uso que se faria das obras por meio da internet, por referir-se a obras que seriam acessíveis por qualquer pessoa no momento desejado.

Considerando isso a importância dos três casos supracitados é a de justamente tentar regular o uso e o acesso da obra na internet, ao determinar o que constitui uso justo ou infração no que se refere ao compartilhamento de obras por vias digitais. Quando o CJEU decide onde se aplica o Direito de Comunicação da Obra ao Público e onde não se aplica ele não está nada menos do que delimitando o limite dos direitos patrimoniais do titular da obra. Essa atuação é importante para garantir o equilíbrio entre o interesse dos particulares de proteger suas obras e do público em acessá-las.




1 - Infelizmente o inteiro teor do acórdão ainda não está disponível em português, mas a versão em francês encontra-se aqui.
2 - Organização Mundial da Propriedade Intelectual


domingo, 29 de março de 2015

Fundamentos da Decisão #1: O alto renome da marca Goodyear


Inauguro com esse post a seção do blog "Fundamentos da Decisão", na qual eu indicarei e analisarei decisões judiciais de tribunais do Brasil ou do mundo relevantes para a Propriedade Intelectual. Como primeiro julgado eu escolhi a decisão do STJ que indeferiu a concessão de alto renome por tempo indeterminado à marca Goodyear.



O objeto do Recurso Especial nº 1.207.026, datado de 17/03/2015, tratava-se, em sua origem, de ação proposta pela Goodyear no ano de 2002 contra o INPI com vistas à reconhecer o alto renome de sua marca. Em brevíssimo resumo tanto em primeira quanto em segunda instância (no TRF da 2ª Região) a fabricante de pneus teve seu pedido acolhido, de forma que o Instituto foi compelido judicialmente a fazer a requisitada anotação de alto renome, conforme o artigo 125 da lei 9.279/96.

Contudo, em reposta à intimação judicial, o INPI informou que a anotação de alto renome ocorreria conforme o artigo 10º da Resolução nº 121/2005, o qual estabelece o prazo de 5 anos para a manutenção de tal registro. Tal comunicado estimulou, em última instância, a interposição do recurso em análise sob a alegação de negativa de prestação jurisdicional (art. 535 CPC) e de ofensa à coisa julgada (art. 467 CPC e 6º, § 3º da LINDB).

Em sua decisão o STJ primeiramente afastou a alegação de negativa de prestação jurisdicional por "inexistir omissão, contradição ou obscuridade no acórdão embargado, ficando patente, em verdade, o intuito infringente do pleito, que objetivava a reforma do julgado por via inadequada".

O STJ, de igual sorte, não acolheu o argumento de ofensa à coisa julgada, tendo em vista que o INPI reconheceu a procedência do pedido e que:
 a sentença não anotou nenhum lapso temporal que devesse ser aplicado à marca da ora recorrente, até porque a fixação de um "prazo de validade" não seria possível juridicamente. Primeiro, porque não houve pedido do autor nesse sentido. Segundo porque, em atendimento ao princípio da legalidade, o registro da marca de alto renome pelo INPI somente pode ser feito em conformidade com as regras legais e administrativas vigentes que tratam da matéria.
 Por fim, além de argumentar que a determinação do lapso temporal nunca foi objeto de pedido por parte da Goodyear o Tribunal também destacou que registro de alto renome deve estar submetido à regulação administrativa sobre o tema, ainda que esta seja posterior ao pedido de prestação jurisdicional.

Em sua conclusão o STJ declarou:
Acolher a pretensão da ora recorrente e anotar o alto renome de sua marca sem prazo de validade seria o mesmo que lhe conceder um direito perpétuo e ilimitado no tempo, o que não encontra amparo no ordenamento jurídico. Definitivamente, não é essa a extensão do título executivo que determinou a anotação do renome de sua marca.
 Assim sendo, foi negado provimento ao Recurso Especial interposto pela Goodyear, impossibilitando a proteção "infinita" de sua marca como sendo de alto renome.

sexta-feira, 27 de março de 2015

O anacronismo do licenciamento de conteúdo por região no século XXI


"O uploader não disponibilizou esse vídeo no seu país". Imagino quantas pessoas já se depararam com a mensagem acima (esta proveniente do youtube) ou com outras de igual teor em websites como Vimeo ou até mesmo da Globo TV e se perguntaram a razão da indisponibilidade do conteúdo desejado. Essa prática se deve ao bloqueio regional, uma das modalidades da chamada Gestão de Direitos Digitais (DRM ou Digital Rights Management em inglês).

Para se entender o motivo da existência do DRM, deve-se primeiramente compreender alguns do direitos do titular da obra autoral, em especial o direito previsto no artigo 9º da Convenção de Berna o qual estabelece ser direito exclusivo do titular da obra autorizar sua reprodução por qualquer modo ou forma. Ou seja, àquele que possui os direitos sobre o livro, filme, vídeo ou imagem compete determinar quem poderá, ou não, reproduzir sua obra.

Assim sendo, a diferença entre os países os quais poderão visualizar o conteúdo depende, entre outros fatores, da vontade de seu titular em licenciar a obra para aquele país além das dificuldades provenientes das diferenças entre as legislações nacionais como a idade legal mínima ou eventuais tributações incidentes sobre obras culturais. Em suma, trata-se de estratégia de mercado e o DRM existe justamente para garantir sua aplicabilidade

Então por qual motivo seria o licenciamento de conteúdo por região anacrônico? Com a evolução da internet e o desenvolvimento da "web 2.0" a troca de conteúdo entre os usuários da rede aumentou intensamente. Especialmente no advento do século XXI com o aparecimento da tecnologia peer-to-peer em serviços como Napster e Kazaa, a relação entre os usuários da internet não é mais somente com o servidor local do seu país, mas sim com usuários do mundo inteiro. Em consequência por mais que provedor de conteúdo principal bloqueie o conteúdo desejado, sempre haverá meios alternativos de se acessá-lo.

Ou seja, por mais que companhias de TV queiram determinar quais países terão acesso à seus filmes, usuários criam formas de burlar o bloqueio digital para tentar adquirir o produto que desejam. Cabe às grandes produtoras de conteúdo se adaptarem à nova realidade de acesso global às obras, ou sofrerem as consequências da concorrência com serviços alternativos.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Star Wars e a aplicabilidade do Direito Moral no Copyright e no Droit D'auteur


Acredito ser mistério para poucos que em 2012 a Walt Disney Company adquiriu a Lucasfilm do diretor e cineasta George Lucas. À época este declarou que "sempre acreditou que ´Star Wars´ poderia viver sem ele e que acha importante fazer essa transição enquanto ainda está vivo". No ato da aquisição da companhia a Disney confirmou o lançamento de um sétimo filme para a saga Star Wars.

A relevância desse caso para o Direito de Autor surge quando o consagrado criador da saga teve suas ideias rejeitadas para a criação de novos filmes da saga. Apesar desse fato soar quase absurdo por conta dos direitos morais do autor, cabe lembrar que o sistema de Copyright americano não adota as mesmas premissas existentes no sistema de Droit D'Auteur, do qual a legislação brasileira em muito se baseia.

A seção 201 do Copyright Act americano, na letra d, explica que o direito sobre a obra pode ser transferido em sua totalidade, incluindo os direitos exclusivos previstos na seção 106 do mesmo diploma legal, em especial a realização de trabalhos derivados baseados na obra protegida.

No direito brasileiro, por outro lado, o artigo 24 da lei 9.610/98 declara expressamente em seus incisos IV e V que cabe ao detentor dos direitos morais da obra (o autor) o direito de assegurar a integridade da obra e de modificá-la. Assim, ainda que os direitos patrimoniais da mesma fossem cedidos o autor não perderia o direito de ditar os rumos de sua criação, como aconteceu com o cineasta americano.

Por exemplos práticos como esse se percebem as diferenças entre o sistema brasileiro e outras legislações nacionais. O propósito desse blog é justamente trazer fatos relevantes ao Direito da Propriedade Intelectual ocorridos no mundo e compará-los e analisá-los à luz da legislação brasileira. Creio que esse paralelo seja importante para auxiliar no estudo da matéria e para entender, por exemplo, a razão pela qual diferenças como essa influem nas ações da indústria fonográfica americanas em divergência com o que ocorre no restante do planeta.